Co-CEO da Sigma Lithium, Ana Cristina Cabral-Gardner aposta na tecnologia para produzir uma mineração mais sustentável e socialmente inclusiva.
Mãe, investidora, filantropa, entusiasta da cultura green tech e apaixonada pelo Brasil, mesmo morando em Nova York, a 7 mil quilômetros de distância. Co-fundadora da A10 Investments, uma boutique de investimentos de impacto, a executiva Ana Cristina Cabral-Gardner acumula 30 anos de experiência junto ao mercado financeiro. Aos 18 anos, ela iniciou sua carreira no Banco Garantia. Mais tarde, deixou seu nome na história de instituições como Goldman Sachs, Credit Suisse e Merrill Lynch. Contudo, Ana nunca havia atuado diretamente com mineração.
Na década de 1990, porém, a executiva participou ativamente da montagem e da execução do projeto de privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A atuação executiva na iniciativa foi o começo de uma carreira que alcança seu ponto mais surpreendente à frente da mineradora canadense Sigma Lithium. Desde setembro do ano passado, Ana assumiu o cargo de co-CEO da companhia, ao gerir o fundo de private equity que controla a empresa.
Comprometida com o desenvolvimento sustentável, ela participou da abertura de capital da Sigma na Nasdaq, pioneira na negociação de ativos tecnológicos e focados na agenda ESG (governança ambiental, social e corporativa, em português). O sucesso da ação está diretamente associado ao perfil da empresa e ao audacioso projeto de extração de lítio no Brasil. A Sigma investirá R$ 1,2 bilhão na instalação de um complexo para produção de concentrado de lítio de alta pureza nas cidades de Araçuaí e Itinga, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Em entrevista à Revista Mineração & Sustentabilidade, a executiva revela detalhes da planta em Minas Gerais, mostra os impactos econômicos desse projeto, analisa os diferenciais da Sigma para a concorrência e esclarece como a escolha por priorizar uma indústria de base tecnológica colocou o meio ambiente e as pessoas no centro dos investimentos. Essa opção corajosa lhe rendeu desde a desconfiança de executivos, acostumados com modelos tradicionais de negócios, até um prêmio de liderança sustentável da Organização das Nações Unidos (ONU).
Confira a entrevista completa:
Mineração & Sustentabilidade – A Sigma começou sua trajetória em 2012, movida pelo desafio de uma mineração mais sustentável. Atualmente, está prestes a produzir no Brasil e já possui ações na Nasdaq. Como a empresa cresceu em tão pouco tempo?
Ana Cristina – Investi na Sigma quando a empresa tinha quatro anos. Nós a escolhemos devido ao alinhamento de propósitos estratégicos com o fundador, o ex-CEO da Anglo American na África do Sul, Calvyn Gardner. Ele pensa o modelo de negócios de forma
integrada, assim como a A10 Investments. Nossa proposta não era explorar minério; mas produzir um insumo de altíssimo valor agregado, cumprindo os requisitos de uma agenda ESG. O que isso implicava? Em um investimento de R$ 500 milhões para a planta no Vale do Jequitinhonha.
Não queríamos deixar um legado ruim para a população nem para o meio ambiente. No Brasil, a mineração tinha se tornado tóxica desde as tragédias com barragens. Ao entrarmos com investidores globais dispostos a aplicar recursos para limpar o setor – os mitigation funds – conseguimos fazer com que o projeto nascesse sustentável. Em 2018, nós abrimos capital no Canadá para que metade dos recursos alocados fossem destinados à construção de uma planta de demonstração do projeto e a outra metade fosse para auditoria da reserva mineral.
Mas só em 2021, quando chegamos à Nasdaq, o nosso projeto foi, de fato, aceito. Diante dos impactos da pandemia de Covid-19 em todo o mundo, o mercado nos tratou como ‘a estrela sustentável’. Há seis anos, quando escolhemos investir nesse projeto, o propósito era colocar nosso dinheiro atrás do discurso. Por isso, quando a expansão de licença foi
aprovada junto ao Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), escutamos elogios ao nosso projeto de três representantes de ONGs. Isso era inédito em uma reunião do Copam.
M&S – Ao fazer a opção por um projeto sustentável em toda a cadeia produtiva, a Sigma enfrentou resistência por parte do setor?
Ana Cristina – Em uma conferência na Austrália, fui chamada de hippie e ‘ongueira’ por um CEO. Esse senhor disse: “Isso é o que acontece quando se coloca uma mulher no comando”. Por quê? Embora o Rio Jequitinhonha seja perene, a população ribeirinha precisava de caminhão-pipa para consumir água. A razão é simples: aquele manancial é um esgoto a céu aberto, que recebe todo tipo de coliformes fecais. Nem nosso sensor óptico foi capaz de funcionar.
Então, tomamos a decisão histórica de preservar o riacho Piauí – usado para o abastecimento local – e contratar duas empresas químicas globais para trazer sachês de purificação de água, pois os animais também utilizam aquele riacho. Em virtude dessa
escolha, investimos 15% a mais de recursos (Capex) para instalar uma estação de tratamento de esgoto, deixando a água do Rio Jequitinhonha em condições de abastecer a planta.
Fomos crucificados por perder, ao todo, 25% do nosso investimento, mas garantimos o bem-estar social. Além disso, por ser um projeto de base tecnológica, nossa planta tem uma taxa de retorno capitalista, compatível com o mercado global. Essa decisão nos rendeu não só a atenção de players do mercado, como o prêmio de liderança em mineração sustentável entregue pela ONU durante a 25ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP25), realizada em Madrid em 2019.
M&S – Mesmo antes da implantação do projeto de extração de lítio na Grota do Cirilo, no Vale do Jequitinhonha, a Sigma já investe em ações sociais. Qual o impacto dessa decisão, principalmente diante de uma pandemia?
Ana Cristina – Antes da pandemia, a Sigma estruturou um plano de desenvolvimento regional, com ações definidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas a crise sanitária fez invertermos a ordem de prioridades: trouxemos o objetivo três – saúde e bem-estar – à frente da educação. Em março de 2020, aproveitamos nossa capilaridade para abastecer 16 entidades em Araçuaí, que atendem 240 mil pessoas ao ano, com toneladas de álcool em gel e de desinfetante hospitalar – uma necessidade apontada pela população local.
As dificuldades da comunidade também nos motivaram a estender o programa para três anos, além de oferecer cestas básicas para as famílias – principalmente aquelas formadas pelas ‘viúvas do Vale’. Enquanto as prefeituras nos ajudaram a identificar 3 mil famílias vivendo com menos de R$ 90 por mês, mobilizamos empresários para arrecadar fundos, com apoio do Rotary. A Sigma sozinha viabilizou 2,2 milhões de refeições, dando fim
à fome em Araçuaí e Itinga.
Neste ano, reabrimos duas creches para que a população feminina pudesse trabalhar. Ao todo, 560 famílias foram atendidas na região. Em outra frente, implementamos um programa de microcrédito que atendeu 1,5 mil mulheres com R$ 2 mil cada, além de seis semanas de jornada de educação financeira on-line, promovida pelo projeto “Dona de Mim”. Elas tinham que fazer o curso em pequenos grupos, ter conta bancária, PIX e acesso à internet. Para quem não tinha, estruturamos os centros comunitários para que pudessem estudar.
Com esse dinheiro, você reergue uma mulher. Ela divide um equipamento doméstico com a vizinha, cozinha, vende o que produz e paga o empréstimo, a juros de 10%. Para cada real devolvido, nós colocamos mais um real no projeto. Já emprestamos mais de US$ 1 milhão por meio desse programa – inspirado no Banco de Bangladesh, do Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006. Tudo isso faz parte de um grande projeto de impacto social.
“Até o momento, geramos 470 empregos
diretos e 5 mil indiretos, sendo 70% da mão de obra oriunda do Vale do Jequitinhonha.”
M&S – A companhia anunciou um aporte de R$ 1,2 bilhão na instalação de um complexo para produção de concentrado de lítio no Vale do Jequitinhonha. Como esse investimento pode impulsionar o desenvolvimento local?
Ana Cristina – Até o momento, geramos 470 empregos diretos e 5 mil indiretos, sendo 70% da mão de obra oriunda do Vale do Jequitinhonha. Essas pessoas foram repatriadas por meio do programa “De Volta ao Lar”. Como os salários da mineração são mais altos, para cada emprego direto criado outros 13 indiretos são gerados na região. O cimento é feito no Vale. O concreto também. A renda de um trabalhador nosso ajuda a manter o comércio e os serviços.
Além disso, desde o início, optamos por pagar o valor cheio da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Como produzimos baterias de alta capacidade para carros elétricos, nós pagaremos os royalties sobre o produto transformado, que é a beleza de trazer tecnologia para o setor. Com isso, mudaremos a prática do mercado. O problema não está na alíquota de 2%, está no propósito. Nós pagaremos o royalty sobre o valor agregado.
O que isso representa em números? Só na primeira fase do projeto, a Sigma pagará US$ 140 milhões de royalties, o equivalente a R$ 715 milhões. Atualmente, o orçamento de Itinga é de R$ 40 milhões, contra R$ 120 milhões de Araçuaí. Com esses recursos, o Produto Interno Bruto (PIB) de Itinga crescerá 132%, enquanto o de Araçuaí expandirá 47%. Por isso, digo: depois de anos atuando no exterior, é uma honra transformar o Vale
do Jequitinhonha no Vale do Lítio.
“Só na primeira fase do projeto, a Sigma
pagará US$ 140 milhões de royalties,
o equivalente a R$ 715 milhões.”
M&S – Quais são as vantagens competitivas da produção de concentrado de lítio com 6% de pureza que a Sigma fabricará em Araçuaí e Itinga?
Ana Cristina – Nós não vendemos um concentrado de lítio qualquer; negociamos um concentrado pré-químico e purificado. Normalmente, um projeto de rocha demora cinco anos; de salmoura de sete a dez anos. A metalurgia e a mineralogia determinam o que sairá dessa siderúrgica: uma planta green tech, de lítio puro para bateria de alto desempenho; de battery grip, o grau para baterias comuns, ou se servirá apenas para a indústria cerâmica, pois o lítio não tem pureza necessária. Nossa planta de demonstração apontou que temos um lítio do mais alto padrão.
M&S – Como a empresa pretende utilizar a tecnologia para minimizar os danos ambientais, aumentar a produtividade e prolongar a vida útil das minas?
Ana Cristina – Nossa planta de demonstração já nasceu green tech, mesmo sendo do tamanho do maior produtor do Brasil: a Companhia Brasileira de Lítio (CDL). Ela não utilizava químicos nocivos, fazia o empilhamento total de rejeitos a seco e reaproveitava toda a água no circuito úmido. O químico disposto em pilhas – que normalmente percola no solo e atinge o lençol freático – não era um problema na nossa planta. Com ela, nós nos diferenciamos e conquistamos clientes.
Então, a tecnologia entrou em nosso processo para purificar o lítio. A grosso modo, ela ajuda a separar, purificar e concentrar o material, sem usar químico em nenhuma das etapas. Quando falo em nocivo, refiro-me ao ácido sulfúrico, que causa sérios problemas
ambientais e à saúde humana. Nós não usamos planta de flotação, que além de usar químicos, gasta bastante água e gera um rejeito ultrafino complicadíssimo do ponto de vista ambiental.
“Nós não vendemos um concentrado de lítio qualquer; negociamos um concentrado
pré-químico e purificado.”
M&S – A empresa pretende colocar o Brasil na rota da produção do ‘lítio verde’. Por isso, destinou 20% dos investimentos em ações de ESG – inclusive para aproveitamento do rejeito. Quais são as principais ações previstas?
Ana Cristina – Na COP26, realizada o ano passado em Glasgow, na Escócia, assumimos o compromisso de fazer o rejeito reciclado, transformando esse material em cerâmica. Em novembro, iremos para a COP27, no Egito, com zero rejeito úmido. Como não usamos químicos, os clientes têm interesse na compra do rejeito da nossa mineração. Mas essa opção teve um custo: 20% do capex, um investimento que compensa pelo retorno ambiental e pela sofisticação do produto.
O pulo do gato foi aprimorar uma tecnologia que já funcionava para transformar o pré-insumo em produto final – a separação por meio denso (DNS, na sigla em inglês). Em termos gerais, automatizamos e digitalizamos os circuitos com um algoritmo para a planta,
desenvolvido e registrado no Brasil.
Fomos cobaias no circuito de empilhamento a seco, porque queríamos que o rejeito ultrafino também fosse secado. Os testes levaram cinco meses, mas a tecnologia está pronta para empilhar até ultrafinos.
M&S – Há previsões de especialistas que a procura por veículos elétricos salte de 5 milhões de unidades/ano para 35 milhões de unidades até 2030. Como a Sigma pretende captar esse mercado?
Ana Cristina – Você pode produzir o minério de lítio para a indústria cerâmica ou de graxas lubrificantes, que vale uns US$ 70 a tonelada. Mas também pode produzir um insumo purificado para baterias de alto desempenho, que é o Santo Graal do negócio. Quem são os clientes nesse caso? São os maiores fabricantes de bateria do mundo: Panasonic, Samsung, CATL e a líder mundial LG Energy Solution. Ela possui uma tecnologia flexível (flex tech) que a permite fornecer baterias para diferentes veículos. São ótimos parceiros.
Em novembro de 2021, celebramos um acordo comercial com a LG. Mas antes investimos R$ 560 milhões em testes durante dois anos e meio, comprovando a consistência e a pureza do lítio extraído no Jequitinhonha. O processo de certificação requer tempo, embora garanta que a bateria não explodirá. Além disso, o resíduo de uma planta como a nossa é disputadíssimo. Por isso, conseguimos negociá-lo, pois serve para eletrônicos, devido ao baixo teor de pureza. É isso que nos diferencia da concorrência: a sustentabilidade em todo o processo.
Afinal, as empresas de mineração têm duas opções para o futuro: ou se ajustam à realidade ou estão fora. Investidores, assim como a A10 Investments, querem companhias comprometidas com a transição energética. E a transição energética é toda tecnológica.
Entrevista especial publicada em nossa edição impressa:
Edição 42 (Julho a Setembro de 2022).